quarta-feira, 23 de junho de 2010

O DIA EM QUE FREUD SE DESPEDIU DE MIM...

[GRAVANDO]
Já era tarde. Confesso que a vida noturna sempre foi mais valiosa pra mim que o raiar do dia, que o nascer do sol. Nunca desconfiei desse talento que nasce da escuridão, dessa vida que funciona e que pulsa quando todos dormem, quando todos descansam. Dessa inquietude sombria que só a lua, a neblina, os travestis, os malfeitores e moradores de rua compreendem. Era mais uma noite. Não uma noite comum como aquelas que a gente toma banho, come, dorme, sonha... Era mais uma noite de pesadelo. O pesadelo de se reconhecer vazio, oco, sem referência, sem ter o que dizer... De reconhecer uma fraqueza e de não saber lidar com ela. É assim que eu me sinto hoje. Mas o que fazer quando de repente o tal argumento fica sem assunto? Quando a voz da afirmação se cala e resolve dar lugar a outra forma de discurso, tão ingênuo e paradoxalmente tão traiçoeiro que nem mesmo eu (a quem tantos elogiaram a vida toda pelos atributos oratórios) conseguira traduzir? Me calei, confessei o meu calar! Talvez tenha caído em mais uma armadilha da minha astuta neurose, que insiste em me fazer desconhecer, me afastar de mim, me encher de alguma coisa que faz o estômago doer, que faz as máscaras aparecerem assim como a aptidão para o palco. Um palco da vida onde por muitas vezes fui aplaudido de pé, enquanto meu corpo me vaiava, gritava por uma verdade cênica, ainda que fosse uma “minha” verdade. Pela primeira vez achei que estava encarando essa verdade. Vã ilusão. Fui convidado a deixar o divã, a procurar em mim mesmo a razão do meu calar, afinal de contas, como é possível alguém ter tamanha habilidade para cair de um penhasco e levantar aparentemente implacável? Talvez eu esperasse que alguém me enfrentasse a tal ponto de aos poucos reverter esse quadro. É quase uma experiência sobrenatural de alguém que desencarna repentinamente e precisa de um tempo pra entender que não é possível mais habitar em determinado plano, que as coisas mudaram, que a realidade mudou, que você mudou... ainda que isso não seja claro e perceptível. Precisava sim de alguém que me ajudasse a imergir nesse poço do auto-conhecimento porque no fundo passei a vida toda acreditando me conhecer como ninguém. Mas foi na primeira mágica experiência do amor, que o feitiço se quebrou. Não só o feitiço do amor perfeito, mas o feitiço do menino perfeito, implacável. Desencarnei hoje para a psicanálise. Fui desenganado enquanto sujeito de conflito, de incômodo, ganhei hoje a previsível medalha da acomodação. Passo por mais uma experiência de vida onde fui convidado a encarar sozinho a minha fragilidade. Talvez o não poder se calar é o preço que se paga por parecer tão forte, tão resistente, tão artificialmente preparado e tão raso. Pane no sistema! Até a próxima sessão... isso se minhas mãos e mentes robóticas desejarem o auto-desajuste.
[CORTA]